Aquele parecia um dia normal. A fria garoa da madrugada
paulista caía incessante. As ruas e avenidas, aos poucos, enchiam-se de carros
e transeuntes. Em meio a tudo isso o sol desponta generoso. Parece que toda a
natureza desperta reverenciando o disco dourado. Poucos são os Homens que
dispensam um minuto de seu tempo para contemplar rara beleza.
Os primeiros
raios do sol, penetrando entre as frestas dos portentosos edifícios da capital,
vão tomando o lugar das gotas de orvalho deixadas pela garoa da madrugada. Rapidamente
as ruas e avenidas enchem–se mais de automóveis e de gente, sempre apressadas,
em busca de seus destinos.
Realmente parecia um dia comum.
O perfume do amanhecer substitui o
aroma da noite. Em qualquer outro local, nessa hora tudo é silêncio. Mas nessa
cidade que nunca dorme, as pessoas apenas substituem-se umas às outras num
incessante vaivém.
Na padaria da esquina, após uma gostosa
espreguiçada, sentindo o cheiro do cafezinho quente, cujo vapor paira no ar,
misturando-se à fumaça dos cigarros (e isso foi escrito num tempo em que não
havia a lei contra o fumo), saboreando o pãozinho com manteiga, na primeira
reunião social do dia, o que predomina é a discussão sobre o clássico de maior
rivalidade do futebol paulista disputado no dia anterior: Corinthians e
Palmeiras.
Tinha tudo para ser um lindo dia. No
entanto, os gases emitidos pelos veículos tornavam o ar pesado e sombrio, e o
burburinho da madrugada cedia lugar à fanfarra de buzinas e ronco dos motores.
A atmosfera tornava-se cada vez mais cinzenta. E nesse clima não era só o
ambiente que se acizentava. O semblante das pessoas já se tornava diferente. Naqueles
rostos (que antes expressavam num sorriso natural, franco e aberto), que se cruzavam
nas ruas, o desejo mútuo de um bom dia, aos poucos, dava lugar a rostos
fechados e sombrios.
Ao passo que o dia torna-se mais claro,
as pessoas fecham-se ainda mais. Tornam-se diferentes, até mesmo indiferentes
umas com as outras. Olham-se não mais com simpatia, mas com desconfiança. A
cordialidade cede lugar à indiferença.
Quase ninguém se dá conta da mão estendida suplicando pela
caridade alheia. Em um templo religioso, oram, pedindo para si, mas quando a
caridade solicita seu concurso fraterno, apenas resmungam uma desculpa.
Esse era um dia comum.
O comércio descerra suas portas para
mais um dia. Mais um dia que provavelmente será igual aos demais. As pessoas
entram nas lojas, olham tudo e prometem voltar mais tarde, saindo da mesma
forma que entraram. É o reflexo da crise.
As ruas e avenidas já totalmente
tomadas por veículos parecem sufocadas. Os ônibus passam lotados pelos
corredores. Para se conseguir uma vaga em um deles o sofrimento é enorme. O
empurra-empurra é geral. O cavalheirismo de outros tempos já não existe. A luta
pela sobrevivência o matou. Cada um por si e os demais que se cuidem. Quem mais
sofre é o idoso que, muitas vezes, é deixado para trás.
Esse parecia um dia comum, porém
pairava no ar um clima deferente. Densas nuvens avançavam sobre a cidade.
O dia claro tornou-se tão escuro como a
noite. A chuva desabou. As pessoas, apanhadas de surpresa, corriam ainda mais,
abrigando-se sob as marquises.
Por um rápido instante toda a cidade
parou. Mesmo que se desejasse, a chuva não permitia prosseguir. Chovia
torrencialmente. Uma viagem no Metrô estava mais disputada que nunca. Os trens,
lotados, passavam lentos pelas estações. Era a operação tartaruga, montada em
protesto por salários mais altos e melhores condições de trabalho.
Nesse dia uma quantidade maior de
pessoas circulava pela cidade, tomando ônibus, trens e Metrô.
Tão de repente como veio, a chuva
parou. As pessoas retomaram seus destinos, enfrentando, ainda, a água que
corria pelas calçadas. O trânsito transformou-se num caos ainda maior. Por
todos os lados veículos abandonados sem condições de prosseguir. Viaturas da
polícia e do corpo de bombeiros circulavam o mais rápido que podiam para
atender a chamados de emergência.
Enquanto isso, dissiparam-se as nuvens,
deixando o céu tão claro quanto antes e o sol voltou a brilhar. A cidade,
porém, continuava caótica.
Com o correr das horas o dia retornava
à normalidade. A chuva da manhã fez uma limpeza no ambiente e a tarde nascia
com o ar mais leve. O centro da cidade, em contraste aos bairros, fervilhava.
No entanto, mais movimentado que o centro estava a Avenida Paulista naquela
tarde. Todas as atenções se voltavam para lá. Militantes do sindicato dos
metroviários, unidos a outros grupos, agitavam a avenida que se assemelhava a
um formigueiro humano.
Agitando enormes bandeiras e
distribuindo panfletos, a massa agitava-se seguindo um caminhão de som, onde
líderes do movimento discursavam alertando a população.
Cercados por policiais que procuravam
manter a paz da movimentação, a massa seguia em passeata em direção a Praça da
Sé – marco zero da capital paulista.
O trânsito, desviado para avenidas das
redondezas, tornou-se novamente caótico.
Todas as reivindicações do movimento
resumiam-se em melhores condições de trabalho e salários mais altos.
Chicão, um dos líderes desse movimento,
deixava isso bem claro quando inflamava a multidão com seu discurso:
“Nós fomos surpreendidos com o pacote
econômico lançado pouco depois das eleições. Aumento de impostos, arrocho
salarial e a desaceleração da economia provocam mais desemprego e recessão. A
desculpa é de que precisa pagar dívidas contraídas no exterior. Estes
compromissos financeiros já existiam há muito tempo e o governo poderia ter
tomado medidas antes para evitar esta situação. Mas preferiu gastar milhões em
publicidade no período pré-eleitoral e agora apresenta a conta aos
trabalhadores e à população, através de um pacote perverso. Conclamamos a todos
a participarem da luta para garantir emprego, direitos trabalhistas e
transporte.”
Um comentário:
A vida por si só, já não seria um paradoxo??
O que dizer então de um dia normal??
Postar um comentário