sábado, 30 de abril de 2016

UM DIA NORMAL (PARADOXOS)

         Aquele parecia um dia normal. A fria garoa da madrugada paulista caía incessante. As ruas e avenidas, aos poucos, enchiam-se de carros e transeuntes. Em meio a tudo isso o sol desponta generoso. Parece que toda a natureza desperta reverenciando o disco dourado. Poucos são os Homens que dispensam um minuto de seu tempo para contemplar rara beleza.
        
        Os primeiros raios do sol, penetrando entre as frestas dos portentosos edifícios da capital, vão tomando o lugar das gotas de orvalho deixadas pela garoa da madrugada. Rapidamente as ruas e avenidas enchem–se mais de automóveis e de gente, sempre apressadas, em busca de seus destinos.

Realmente parecia um dia comum.

O perfume do amanhecer substitui o aroma da noite. Em qualquer outro local, nessa hora tudo é silêncio. Mas nessa cidade que nunca dorme, as pessoas apenas substituem-se umas às outras num incessante vaivém.

Na padaria da esquina, após uma gostosa espreguiçada, sentindo o cheiro do cafezinho quente, cujo vapor paira no ar, misturando-se à fumaça dos cigarros (e isso foi escrito num tempo em que não havia a lei contra o fumo), saboreando o pãozinho com manteiga, na primeira reunião social do dia, o que predomina é a discussão sobre o clássico de maior rivalidade do futebol paulista disputado no dia anterior: Corinthians e Palmeiras.

Tinha tudo para ser um lindo dia. No entanto, os gases emitidos pelos veículos tornavam o ar pesado e sombrio, e o burburinho da madrugada cedia lugar à fanfarra de buzinas e ronco dos motores. A atmosfera tornava-se cada vez mais cinzenta. E nesse clima não era só o ambiente que se acizentava. O semblante das pessoas já se tornava diferente. Naqueles rostos (que antes expressavam num sorriso natural, franco e aberto), que se cruzavam nas ruas, o desejo mútuo de um bom dia, aos poucos, dava lugar a rostos fechados e sombrios.

Ao passo que o dia torna-se mais claro, as pessoas fecham-se ainda mais. Tornam-se diferentes, até mesmo indiferentes umas com as outras. Olham-se não mais com simpatia, mas com desconfiança. A cordialidade cede lugar à indiferença.
Quase ninguém se dá conta da mão estendida suplicando pela caridade alheia. Em um templo religioso, oram, pedindo para si, mas quando a caridade solicita seu concurso fraterno, apenas resmungam uma desculpa.

Esse era um dia comum.

O comércio descerra suas portas para mais um dia. Mais um dia que provavelmente será igual aos demais. As pessoas entram nas lojas, olham tudo e prometem voltar mais tarde, saindo da mesma forma que entraram. É o reflexo da crise.

As ruas e avenidas já totalmente tomadas por veículos parecem sufocadas. Os ônibus passam lotados pelos corredores. Para se conseguir uma vaga em um deles o sofrimento é enorme. O empurra-empurra é geral. O cavalheirismo de outros tempos já não existe. A luta pela sobrevivência o matou. Cada um por si e os demais que se cuidem. Quem mais sofre é o idoso que, muitas vezes, é deixado para trás.

Esse parecia um dia comum, porém pairava no ar um clima deferente. Densas nuvens avançavam sobre a cidade.

O dia claro tornou-se tão escuro como a noite. A chuva desabou. As pessoas, apanhadas de surpresa, corriam ainda mais, abrigando-se sob as marquises.

Por um rápido instante toda a cidade parou. Mesmo que se desejasse, a chuva não permitia prosseguir. Chovia torrencialmente. Uma viagem no Metrô estava mais disputada que nunca. Os trens, lotados, passavam lentos pelas estações. Era a operação tartaruga, montada em protesto por salários mais altos e melhores condições de trabalho.

Nesse dia uma quantidade maior de pessoas circulava pela cidade, tomando ônibus, trens e Metrô.

Tão de repente como veio, a chuva parou. As pessoas retomaram seus destinos, enfrentando, ainda, a água que corria pelas calçadas. O trânsito transformou-se num caos ainda maior. Por todos os lados veículos abandonados sem condições de prosseguir. Viaturas da polícia e do corpo de bombeiros circulavam o mais rápido que podiam para atender a chamados de emergência.

Enquanto isso, dissiparam-se as nuvens, deixando o céu tão claro quanto antes e o sol voltou a brilhar. A cidade, porém, continuava caótica.

Com o correr das horas o dia retornava à normalidade. A chuva da manhã fez uma limpeza no ambiente e a tarde nascia com o ar mais leve. O centro da cidade, em contraste aos bairros, fervilhava. No entanto, mais movimentado que o centro estava a Avenida Paulista naquela tarde. Todas as atenções se voltavam para lá. Militantes do sindicato dos metroviários, unidos a outros grupos, agitavam a avenida que se assemelhava a um formigueiro humano.

Agitando enormes bandeiras e distribuindo panfletos, a massa agitava-se seguindo um caminhão de som, onde líderes do movimento discursavam alertando a população.

Cercados por policiais que procuravam manter a paz da movimentação, a massa seguia em passeata em direção a Praça da Sé – marco zero da capital paulista.

O trânsito, desviado para avenidas das redondezas, tornou-se novamente caótico.

Todas as reivindicações do movimento resumiam-se em melhores condições de trabalho e salários mais altos.

Chicão, um dos líderes desse movimento, deixava isso bem claro quando inflamava a multidão com seu discurso:


“Nós fomos surpreendidos com o pacote econômico lançado pouco depois das eleições. Aumento de impostos, arrocho salarial e a desaceleração da economia provocam mais desemprego e recessão. A desculpa é de que precisa pagar dívidas contraídas no exterior. Estes compromissos financeiros já existiam há muito tempo e o governo poderia ter tomado medidas antes para evitar esta situação. Mas preferiu gastar milhões em publicidade no período pré-eleitoral e agora apresenta a conta aos trabalhadores e à população, através de um pacote perverso. Conclamamos a todos a participarem da luta para garantir emprego, direitos trabalhistas e transporte.”

Um comentário:

Unknown disse...

A vida por si só, já não seria um paradoxo??
O que dizer então de um dia normal??