O réu apresenta-se ao tribunal do júri conduzido por dois policiais. Sentado no banco dos réus, junto ao advogado cedido pelo estado, cujos honorários ele não poderia pagar, deixa a velha bengala, da qual jamais se separou, repousar sobre a coxa da perna direita, a mesma que o fazia levemente manco.
Em seus trinta e quatro anos de idade jamais estivera em um tribunal. Era réu primário: acusado de estupro. Em sua defesa, nada. A mulher que o acusara ajuntou testemunhas que a auxiliavam, enquanto que ele, sozinho no mundo, na condição de réu, jamais pôde contar com tal ajuda.
Dizia-se inocente. Entretanto sua voz estava só contra dezenas de outras vozes a acusarem-no.
Naquele tribunal não havia ninguém que o conhecesse. Com exceção de seu advogado, cuja fama estendia-se de longe, ninguém ousava defendê-lo. Com o semblante calmo (quase todos os réus transmitem tranqüilidade), ouvia as acusações lançadas contra a sua pessoa.
Foi num entardecer paulista que tudo ocorreu...
Ele, sentado num banco do parque Ibirapuera, aguardava o passar das horas. Ela, no auge dos seus vinte anos, para desfrutar o fim daquele dia quente, corria de forma cadenciada pelo parque. Semicoberto, seu corpo exalava feminilidade.
Os minutos correm... e muitos já se dirigem para suas casas. Eles permaneciam ali. Ele, estático, paralisado no tempo, e ela repetindo movimentos aeróbicos e de alongamento. Quando parou, foi sentar-se ao lado dele. A quietude do ambiente e a quase solidão de ambos tornavam possível ouvir as batidas ritmadas do coração que animava aquele corpo de mulher.
Depois de pequena conversação, ele a pega pelo braço e saem. Foi nessa tarde que teve início o seu inferno.
Era massacrado pelas declarações das testemunhas e pelo discurso do promotor. Seu crime? Estupro. Um dos mais violentos do código penal.
Inquirida, a acusante não poupou palavras para denegri-lo. Suas afirmações eram agudas farpas contra aquele homem que, de forma tão violenta, abusara da sua fragilidade feminina.
Todos os presentes ouviam-na profundamente chocados.
Ele permanecia no mais absoluto silêncio. Não fosse ali um tribunal do júri, seria linchado até à morte.
Depois das inquirições preliminares às testemunhas e à acusante, o promotor lembra a condição desse homem solitário, desprezado pela maioria, digno de piedade e, por isso mesmo, astuto autor de crime bárbaro como esse. Razão por que pediu sua condenação.
Por sua vez o advogado de defesa, depois de relembrar os fatos ocorridos naquela tarde, como foi narrado por todas as testemunhas, e a detalhada descrição da acusante, quando esta encontrou aquele homem sentado no banco do parque, como ele a segurou pelo braço, a dificuldade do percurso até o local onde tudo se consumou, o que foi totalmente confirmado pelo réu, concluiu:
- Só uma questão ainda permanece sem resposta: quem conduziu o ceguinho?
(Paulo de Morais. Conto premiado no Concurso “A Paixão Pelo Conto”, promovido pela Academia Brasileira de Letras e publicado no JORNAL DE LETRAS)
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2 comentários:
Sensacional meu amigo!
Abraço
Maravilhoso, sensacional. Parabéns!!!!
"...não devemos julgar, sem ao menos conhecer o fato real."
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